sexta-feira, 12 de junho de 2009

Numa meia-noite assombrosa, enquanto lia, fraco e fatigado,
Quase adormecido, um curioso livro de uma longínqua filosofia,
De repente, ouvi um toque,
Uma leve batida, a roçar a porta do meu quarto.
– É um visitante – murmurei, – que bate à minha porta.

Apenas isso, e nada mais.




Ah, lembro-me claramente, era um lúgubre dezembro,
E cada brasa que morria lançava a sua sombra no chão.
Súbito, ansiei pela manhã; em vão, buscara
Em meu livro um alento para a minha dor – a dor de haver perdido Lenore –
A rara e radiosa dama que os anjos chamam Lenore –

Mas aqui não chamam mais.



O roçar sedoso, triste e incerto das roxas cortinas
Me assustou – aterrorizando-me como nunca;
E agora, para abrandar as batidas do meu coração, comecei a repetir:
– É um visitante que quer entrar em meu quarto.
Um visitante tardio que em meu quarto quer entrar.

Apenas isso, e nada mais.




Nesse momento, minha alma encheu-se de coragem, sem mais hesitar:
– Senhor – eu disse, – ou senhora, perdoa-me, eu imploro;
Mas eu estava dormindo, e roçavas, batendo tão de leve,
Tão de leve batendo, batendo à porta do meu quarto,
Que mal ouvi – abrindo a porta de par em par –

E me deparei com a negra escuridão e nada mais.



Olhando o negrume, fiquei ali por muito tempo, pensando, temendo,
Duvidando, sonhando o que os mortais jamais ousaram sonhar;
Mas o silêncio continuava, e se mantinha inquebrantado,
E a única palavra que se ouviu foi um sussurro: "Lenore!"
Que murmurei, e um eco devolveu-me seu nome: "Lenore!"

Apenas isso, e nada mais.



Voltei-me novamente para o quarto, com minha alma em chamas,
Logo ouvi, outra vez, um toque, uma batida mais forte do que antes;
– Claro – eu disse, – claro que há algo junto à minha janela;
Deixe-me ver, então, do que se trata, e desvendar este mistério.
Deixe-me abrandar o coração e desvendar este mistério!

É apenas o vento, e nada mais.




Abri a janela de um só golpe, quando, rufando as asas,
Entrou um imenso Corvo, como os antigos corvos do passado.
Sem se fazer de rogado, nem por um momento se deteve,
E, com um grande ar senhorial, pousou acima da porta do meu quarto
– Pousou sobre o busto de Atena, acima da porta do meu quarto –

Pousou apenas, e nada mais.




Então, esse pássaro de ébano, ludibriando minha tristeza,
Pelo ar grave e circunspecto que demonstrava,
– Embora sua cabeça seja lisa e brilhante – eu disse, – não pareces um severo,
Assustador, terrível e antigo Corvo a sobrevoar a praia, à noite:
Dize-me teu nobre nome, nesta praia, numa Noite de Plutão!

O Corvo retrucou: – Nunca mais!




Surpreendi-me por essa estranha ave falar tão diretamente,
Embora sua resposta parecesse ter tão pouco significado ou relevância;
Pois não podemos deixar de dizer que nenhum ser humano
Teve a chance de ver um pássaro acima da porta de seu quarto –
Pássaro ou animal, sobre um busto esculpido acima da porta de seu quarto –

Que se chamasse "Nunca mais".



Mas o Corvo, pousado, solitário, sobre o plácido busto, disse apenas
Essa única palavra, como se nela expirasse toda a sua alma.
Nada mais disse, nem moveu sequer uma pluma;
Até eu mal balbuciar: – Outras aves já se foram:
Pela manhã, ela me deixará, como as minhas Esperanças já me deixaram.

Então, o pássaro replicou: – Nunca mais!



Estarrecido com o silêncio rompido por essa resposta tão brusca,
– Duvido – eu disse. – O que ele diz é apenas o que sabe dizer,
Que aprendeu de um dono infeliz, cujo inclemente Desastre
Dele se aproximou muito rápido, até emudecê-lo com seu peso,
Até o estertor de sua Esperança, que carregava a melancolia

De “Nunca, nunca mais!”




Mas, com o Corvo ainda a iludir minha triste alma,
Pus a poltrona diante do pássaro pousado no busto acima da porta;
Então, do fundo assento de veludo, vi-me associando
Os fatos, pensando, o que esse taciturno e antigo pássaro,
Por que esse taciturno, antigo, estranho, amedrontador e terrível pássaro

Grasnava: "Nunca mais!"



Sentado, tentei adivinhar, mas sem dizer palavra
À ave, cujos olhos ferinos agora queimavam em meu peito;
Isto e muito mais tentei adivinhar, reclinando minha cabeça
Sobre o estofo de veludo, sob a luz da lâmpada;
Mas esse estofo de veludo violáceo sob a luz da lâmpada

Nunca mais ela tocará. Ah, nunca mais!



Então, pensei, o ar se adensou, perfumado por um turíbulo invisível,
Balançado por um Serafim, cujo pé tropeçou no tapete.
– Céus! – gritei, – teu Deus te mandou, por esses anjos, ele te enviou.
Alívio, alívio e nepente em tua lembrança de Lenore!
Bebe, ó bebe esse sutil nepente, e esquece a perdida Lenore!

O Corvo retrucou: – Nunca mais!



– Profeta! – exclamei. – Coisa do demo! Ainda assim profeta, senão pássaro do demo!
Se foi enviado pelo Tentador, ou se a tempestade te arremessou à praia,
Desolado, embora destemido, sobre esta terra deserta e encantada.
Neste lar assombrado pelo Horror, sê verdadeiro, eu te imploro:
Há, haverá conforto em Gileade? Dize-me, dize-me, eu te imploro!

O Corvo retrucou: – Nunca mais!



– Profeta! – exclamei. – Coisa do demo! Ainda assim, profeta, senão pássaro do demo!
Pelo Céu que se curva sobre nós, pelo Deus que ambos adoramos,
Dize a esta alma carcomida pela tristeza, se, no distante Éden,
Há uma santa dama que os anjos chamem Lenore:
Há uma rara e radiosa dama que os anjos chamem Lenore;

O Corvo retrucou: – Nunca mais!



– Seja esta palavra o sinal de despedida, pássaro ou demo! – urrei, erguendo-me.
– Volta à tempestade e à praia nesta Noite de Plutão!
Não deixes tua pluma negra como lembrança da mentira proferida por tua alma!
Deixa intocada a minha solidão! Deixa o busto acima da minha porta!
Tira teu bico do meu coração, e afasta-te da minha porta!

O Corvo retrucou: – Nunca mais!



E o Corvo, sempre imóvel, ainda pousado, pousado
Sobre o pálido busto de Atena acima da porta do meu quarto;
E seus olhos parecem revelar os sonhos de um demônio.
E a luz da lâmpada acima lança sua sombra no chão;
E a minha alma que jaz sob a sombra no chão,

Não se erguerá... Nunca mais!



Tradução de Thereza Christina Rocque da Motta
Ilustrações de Gustave Doré






NOTA DA TRADUÇÃO

Edgar Allan Poe justificou que escreveu o poema “O Corvo” para provar que é possível fazer literatura apenas com o intuito de exercício, sem inspiração emocional, apenas seguindo regras de composição métrica.
Por mais distante que se esteja do assunto que escolhemos, há um fascínio pelo tema, que, de algum modo, nos comove, mesmo inconscientemente e, ao nos aproximarmos, percebemos quanto estamos próximos e quanto nos assombra.
A leitura deste poema me fascina desde os dez anos, quando tive chance de lê-lo numa aula de inglês e, de forma direta ou indireta, sempre voltamos ao mote “Nunca mais”, que Poe alinhava ao final de cada estrofe.
O poema construído para em 108 versos divididos em 18 estrofes, já foi traduzido de todos os modos, em prosa, em verso, em forma de soneto, com linhas mais longas ou mais curtas, dependendo do estilo escolhido pelo tradutor.
Entre estes tradutores estão Machado de Assis, Fernando Pessoa, Jorge Wanderley e Alexei Bueno, apenas para citar alguns, como constam da antologia de traduções de “O Corvo”, organizada por Ivo Barroso, em sua terceira e mais recente edição, publicada pela editora Leya (São Paulo, 2012).
Estes e outros tradutores, além de Baudelaire e Mallarmé, para o francês, tentaram e conseguiram, de todo modo, traduzir para sua língua a melhor forma de compor este poema de “efeito quase hipnótico” por sua estrutura, como diz Ivo Barroso, lançando mão de todos os recursos para que surtisse o mesmo resultado, ou o mais próximo dele. Porém, o que me atraiu em “O Corvo” não foi a dificuldade da tradução, nem a delicadeza de sua estrutura, formada de rimas internas, externas e aliterações, mas seu conteúdo sombrio, o hálito frio de sua narrativa, o ambiente assombroso em que o narrador, sozinho durante a noite, se depara com um estranho visitante, que lhe traz uma estranha mensagem.
A vida de Poe, que terminou drasticamente, sem maiores explicações aos quarenta anos de idade, por excesso de bebida e desregramento, somou-se ao mistério criado por sua própria obra, cheio de personagens e histórias soturnas. E para completar o clima, legou-nos este precioso poema, que, por si só, é uma cena fantasmagórica e assustadora, para nos falar um pouco do drama que o autor vivia. Podemos não encontrar correspondência completa entre vida e obra, mas algo de cada uma passa para o outro lado.
A tradução que fiz, menos formal, busca o mesmo clima tenso e instigante que o poema em inglês incita, com a ordenação de sentidos e palavras, respiração e ritmo, para que a narrativa se torne a mais fiel possível ao que Poe escreveu, deixando de lado o formalismo que o português não comporta. Mesmo a tradução mais festejada de Milton Amado, como aponta a antologia de Ivo Barroso, tem uma cadência austera e uma escolha de palavras que assusta o leitor.
O sentido, mais do que a forma, deve falar mais alto. É isso que busca o leitor que não domina um idioma, o que realmente um poema quer dizer. A beleza estética nunca está acima do sentido. E, da mesma forma que a beleza está no olho de quem vê, a leitura deve ser sobremaneira compreensível.
Thereza Christina Rocque da Motta